/A sombra de Hiroshima sobre nós: 60 anos depois

Data: 
02/08/2005
Autor: 
*Luiz Pinguelli Rosa

Einstein, provavelmente o maior físico após Newton, viveu o drama pessoal de ter sido um dos físicos que aconselharam o Presidente Roosevelt a desenvolver a bomba atômica. A razão era o medo de que os nazistas a fizessem primeiro e, com ela, ampliassem a mortandade da Segunda Guerra e subjugassem a humanidade aos seus propósitos inumanos e anti-sociais. Paradoxalmente, Einstein e alguns dos físicos que foram os responsáveis diretos ou indiretos pela bomba atômica tinham profundas preocupações éticas. O mesmo não é verdade para os que se engajaram em pesquisas para o aprimoramento das armas nucleares, seja a soldo dos projetos militares, seja em nome da neutralidade da ciência, seja realizando estudos acadêmicos estimulados e financiados pela sua potencial aplicação militar.

A bomba foi proposta pelos físicos: primeiro, por Szilard à Inglaterra, e depois por ele e por Fermi, com apoio de Einstein, aos EUA, contra a Alemanha, onde a fissão nuclear fora descoberta durante a ascensão do nazismo. Entretanto, antes de estar pronta a bomba norte-americana, os alemães foram vencidos e não tinham avançado muito no sentido de fazê-la. A bomba norte-americana era, pois, desnecessária.

Alguns dos proeminentes físicos envolvidos no projeto Manhattan colocaram-se contra lançá-la em um alvo real, já que a derrota do Japão era uma questão de tempo. Mas, era tarde demais. O controle da bomba fugira das mãos dos seus criadores e tinha passado aos generais, simbolizados pelo General Groves, responsável pela administração do projeto, e aos políticos, especialmente Churchill, Truman e Roosevelt. Niels Bohr, físico dinamarquês, previu a corrida armamentista nuclear e levou sua preocupação a Roosevelt e a Churchill. O primeiro pareceu mais sensível, mas prevaleceu a posição dura do segundo, antagônica à idéia de Bohr de informar à União Soviética, então uma aliada, sobre a bomba. O memorando resultante da reunião dos dois líderes em Hyde Park, em setembro de 1944, estabelecia que: "A atividade do professor Bohr será submetida a um inquérito e medidas serão tomadas para assegurar que ele não seja responsável por fugas de informações, em particular para os russos". Churchill chegou a falar em prender Bohr e em "crime passível de pena de morte". Bohr foi um dos criadores da mecânica quântica, autor do primeiro modelo quântico do átomo, um dos maiores físicos do Século XX.

Outro que ficou contra o lançamento da bomba no Japão foi Szilard, embora tenha se esforçado para convencer primeiro os ingleses e, depois, os norte-americanos a desenvolvê-la. Mas a decisão oficial do governo americano foi: "A bomba deverá ser utilizada o mais cedo possível contra o Japão, sem advertência prévia e sobre um alvo com alta densidade de população...". Não era novidade o massacre de cidades para atingir a população civil, matando dezenas de milhares de pessoas em cada ataque. A diferença era que esses ataques mobilizavam centenas de aviões e milhares de toneladas de bombas. Agora seria necessário apenas uma bomba e um avião.

É interessante verificar como alguns apoiavam essa decisão argumentando com uma espécie de ética peculiar. Foi considerado que o uso de bomba contra o Japão era ideal para fazê-lo render-se e para impressionar os soviéticos. Acrescentava ainda que "nenhuma demonstração técnica - poderia tomar o lugar do uso real com seus horríveis resultados". Era o prenúncio do equilíbrio do terror: A guerra nuclear está sempre pairando como uma possibilidade de destruição total do mundo e, por isso, até hoje ela é evitada, com ogivas nucleares apontadas em permanente estado de alerta, prontas para disparar a qualquer momento.

Quando em 1944 ficara claro que os alemães haviam abandonado seu projeto de bomba, o físico Joseph Rotblat entendeu, como Bohr, que deixara de haver razão para ele permanecer em Los Alamos e pediu permissão para sair (os cientistas estavam sob compromisso e sob forte esquema de segurança). Por que outros cientistas não tomaram a mesma decisão? Segundo Rotblat, o motivo mais freqüente era o simples interesse científico. Esse interesse os levava a esperar até o teste da primeira bomba (de plutônio), em Alamogordo, no Novo México. Outros achavam que o lançamento da bomba no Japão em Hiroxima (de urânio enriquecido) e Nagasaki (de plutônio, como a de Alamogordo) evitaria a perda das vidas de muitos soldados norte-americanos. Outros ainda, mesmo discordando, preferiram calar-se para não prejudicar sua carreira futura como cientistas nos EUA.

Rotblat é hoje presidente honorário do Pugwash, um movimento pela paz fundado por Einstein e Bertrand Rusell. A posição militante pela paz passou a caracterizar a ação política de muitos físicos em todo o mundo. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Física e a SBPC se opuseram ao teste nuclear que se pensou fazer na base de Cachimbo, no Pará, em um programa herdado dos governos militares. Essa é uma atitude ética e política.

Em 1995, Rotblat esteve no Brasil em visita à COPPE/UFRJ, pouco antes de ser agraciado com o Nobel da Paz. Convidei-o de novo a voltar para um seminário no Rio, quando o acompanhei a uma audiência com o Presidente da República para falar sobre o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, assinado pelo Brasil poucos meses depois. O caso do Brasil é peculiar. Além de ter assinado este Tratado, é signatário do Tratado de Tlatelolco que proíbe as armas nucleares na América do Sul, firmou um Acordo com a Argentina para inspeções mútuas das instalações nucleares, com a superveniência da Agência Internacional de Energia Atômica, e consta da nossa Constituição a proibição de armas nucleares.

Infelizmente, os arsenais nucleares das potências militares, com os Estados Unidos à frente, permanecem ameaçando a humanidade. Possuem tais armas: 1- EUA, 2 - Rússia, 3 - China, Inglaterra e França, 4 - Israel, Índia e Paquistão (A numeração diferencia o nível de poderio efetivo). A grande dificuldade técnica para fazer a bomba é dispor do material físsil. No entanto, o extravio de urânio altamente enriquecido e de plutônio, por ocasião do colapso da ex-União Soviética, tornou-se um pesadelo. Não é impossível para um grupo fanático, com especialistas treinados, montar um artefato nuclear rudimentar para explodir em um apartamento, no centro de uma grande cidade, e matar mais de 100 mil pessoas. Isto ocorre em um mundo atormentado pela polarização entre o terrorismo fundamentalista e o terror militar e policial dos ricos, capaz de levar o caos ao Iraque ou executar, por engano, com tiros na cabeça, um inocente trabalhador latino-americano em Londres, como o nosso mineiro Jean Charles de Menezes.

* Coordenador da Pós-graduação de Planejamento Energético da COPPE / UFRJ
** Secretário Geral do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas

*Luiz Pinguelli Rosa