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/Alberto Luiz Galvão Coimbra: O idealismo em ação

É inegável que Alberto Luiz Galvão Coimbra viu muito, muito longe, ao fundar a Coppe, em 1963. Numa época em que ser professor universitário no Brasil era só uma atividade extra, ele mexeu em vespeiros ao defender energicamente um modelo de ensino baseado em horário integral, com dedicação exclusiva. Quando as escolas de Engenharia se preocupavam, basicamente, em formar profissionais para o mercado, ele queria investir em pesquisa. Hoje, aos 90 anos, vítima de sucessivos descolamentos de retina, é com dificuldade que acompanha jogos de futebol ou lê um livro. Mas continua a olhar de forma crítica o país.

 “O investimento que o Brasil faz na Coppe e em outros centros de pós-graduação não é usado pelos governos, na plenitude, para desenvolver a tecnologia nacional. Não podemos só vender minério de ferro e soja. Temos de estabelecer um parque industrial de peso”, diz Coimbra, com a mesma verve nacionalista que o levou a iniciar uma empreitada que muitos achavam inviável: criar um curso de pós-graduação de Engenharia. Hoje, ele se diz feliz por “ver o país cheio de Coppes”. “Nós queríamos influenciar o crescimento, a soberania do país, o estabelecimento de tecnologia nacional... Esse era o sonho. Em parte, o sonho está realizado.”

 

Primeiros anos

 

Sem doutores e professores entre os familiares próximos, nada na história de Coimbra faria supor o papel que teria na evolução da universidade brasileira. Seu pai, Deodato Galvão Coimbra, era o filho aventureiro de um grande comerciante de ferragens de Itu, cidade do interior paulista. Aos 14 anos, foi trabalhar e estudar na Inglaterra, residindo com amigos da família. Só voltou da Europa com mais de 30 anos, para se estabelecer no Rio de Janeiro como importador de confecções de fabricação americana para as maiores lojas do país. Foi assim que conheceu Zahra, filha de Alberto Pereira Braga, dono de uma fábrica de papéis de parede e artigos de carnaval, vendidos em sua própria loja, a Casa David, instalada na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio.

O primeiro filho do casal nasceu pelas mãos de uma parteira, em 1923, na mansão da família Pereira Braga em Botafogo. Alberto Luiz Galvão Coimbra foi batizado com o prenome do avô paterno, mas o sobrenome herdou só do pai, parente distante do único santo brasileiro, Frei Galvão. Em compensação, muito do seu espírito nacionalista e contestador seria moldado pela mãe, que tivera educação refinada, em um colégio interno de elite. “Minha mãe seria considerada hoje uma mulher de esquerda. Admirava os ideais da Revolução Francesa e o socialismo. Meu pai era mais conservador. Essa veia nacionalista eu herdei da minha mãe”, conta Coimbra.

O casal motivou os filhos a exercitar o domínio do inglês, falando a língua em casa, na então bucólica Copacabana. Isso viria a calhar quando, por volta dos 17 anos, Alberto morou um ano em Nova York. O pai viajara a trabalho, levando toda a família. O adolescente havia terminado o curso ginasial e passou o ano fora da escola, dedicado às leituras – devorava livros do belga George Simenon e do americano Mickey Spillane, seus favoritos, e clássicos da coleção Modern Library. Além disso, aprendeu a datilografar e consolidou a fluência no inglês.

 “Isso foi muito útil para mim no início da Coppe, quando eu cuidava da correspondência com órgãos estrangeiros. Nós só tínhamos uma secretária part-time e todos precisavam ajudar em tudo, eu inclusive”, rememora.

Gosto pela matemática

Aluno dos renomados colégios Universitário e Andrews, não era o primeiro da turma. Mas foi um dos 13 aprovados no concurso para cursar Química Industrial na Escola Nacional de Química, da Universidade do Brasil, atual UFRJ. Lembra que se sentia “orgulhoso por estar fazendo o curso universitário em uma escola para a qual passar no vestibular era muito difícil”. Na universidade, tomou gosto pela matemática, que mais tarde o conduziria à graduação em Engenharia Química. Dedicava também parte do seu tempo ao esporte – especialmente remo e futebol – e ao diretório estudantil.

Continuar o estudo após a graduação era raríssimo no Brasil em 1947. Mas Coimbra, recomendado pelo professor Athos da Silveira Ramos para uma bolsa, embarcou para fazer mestrado na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. “A aventura começou pelo voo em um DC3 que pulava pelo Brasil, República Dominicana, até chegar à Flórida, horas antes de um tufão”, lembra. O curso revelou ao jovem professor uma estrutura universitária muito organizada, em que professores e alunos dedicavam todo o dia aos afazeres acadêmicos. Em contraste, lembra, “o nosso ensino universitário era quase um bico; uma espécie de honraria, mas que não significava eficiência”.

Ele ainda estava concluindo o mestrado quando o padre jesuíta Roberto Saboia de Medeiros visitou o campus.

Por recomendação do orientador de Coimbra, Frank Tiller, Saboia convidou-o para lecionar na Faculdade de Engenharia Industrial, em São Paulo. De volta ao Brasil em 1949, Coimbra se casou com uma antiga namorada, a estilista Betty Quadros, e foi morar na capital paulista.

 

O guloso

Em 1953, retornou ao Rio como docente do Instituto de Química da Universidade do Brasil. Com dois filhos, mantinha na época vários empregos. Além da UFRJ, lembra, “dava aula na PUC-Rio e no curso de refinação de petróleo da Petrobras, era consultor da Castrol e da Carborundum e tinha uma firma própria, em que fazia projetos para a indústria”.

Por causa dessa intensidade na dedicação ao trabalho, Coimbra receberia um apelido dos alunos. Era o Guloso, que devorava os trabalhos dos estudantes e ainda exigia mais. Foi em meio a essa rotina insana que ele decidiu perseguir um projeto que mudaria a pós-graduação no Brasil: implantar um curso de mestrado de Engenharia Química.

Em 1960, foi recomendado pelo seu professor da Vanderbilt, Frank Tiller, para uma viagem a várias universidades americanas. Tiller, químico respeitado, pretendia influir na universidade brasileira, modificando sua organização administrativa. Esperava que o antigo discípulo assumisse a tarefa. Mas Coimbra voltou do giro acadêmico com outra proposta. A disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética pela primazia nos avanços tecnológicos provocara uma reformulação nos cursos de Engenharia americanos. Havia uma nova ênfase na pesquisa científica, uma valorização dos fundamentos da física e da matemática. Era o que faltava ao Brasil, achava Coimbra, já tomado pelo sonho de ver brotar tecnologia na terra do café. “Administração não é o meu forte. Vamos fazer uma pós-graduação”, disse a Tiller.

 

Determinação e ousadia

O curso de pós-graduação em Engenharia Química, que seria o embrião da Coppe, traria a marca da determinação – e da pouca disposição para observar formalidades burocráticas – do seu fundador. Sem espaço para as aulas, Coimbra ocupou duas salas do prédio da Praia Vermelha, destinadas a professores quase sempre ausentes, para acomodar os primeiros alunos. Dedicado, largou os demais trabalhos para adotar o regime de dedicação integral e exclusiva que pedia aos outros. Exigente, não tirava férias e cobrava aos docentes presença, pontualidade e gravata. Com poucos recursos, buscava convênios para trazer professores estrangeiros. Independente, era apoiado pelos americanos, mas também importava cientistas russos em pleno regime militar. E recusava-se a demiti-los, apesar das advertências de assessores da direção da universidade.

Ainda que esse não tenha sido o seu único episódio de desafio ao regime militar (em pelo menos dois casos, fez questão de contratar professores perseguidos), Coimbra diz que nunca teve tempo para a política. “Minha militância sempre foi só futebolística: o Botafogo”, já declarou. Nunca foi filiado a partido, ainda que se considere um socialista. Mesmo assim, suas atitudes independentes certamente influenciaram a instalação, em 1973, de um processo administrativo contra ele, a partir de denúncias de três professores hoje lembrados na Coppe como “os cavaleiros do Apocalipse”.

Impaciente com burocracia, Coimbra praticava uma administração pouco ortodoxa e centralizava o recebimento e a gestão dos recursos financeiros. O processo administrativo resultou no afastamento do fundador da Coppe após dez anos no comando da instituição e num demorado e doloroso processo que terminou por inocentá-lo. Um assunto que hoje ele faz questão de esquecer. Mas admite: “Penso que eles queriam mandar na Coppe, e eu estava no caminho”, resume.

 

Exílio

É preciso alguma insistência para Coimbra aceitar lembrar o que sofreu. Foi convocado para depor ao menos três vezes na Polícia Federal e foi fichado, com direito a humilhação. De outra feita, depôs em um inquérito na sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. O brigadeiro que conduzia a sessão queria saber por que a Coppe empregava professores estrangeiros, particularmente russos. “Eu explicava que, no Brasil, a tecnologia ainda era incipiente e era preciso trazer professores estrangeiros, de vários países, para que os alunos recebessem uma formação atualizada”, lembra.

O pior momento foi quando, caminhando na rua, em Ipanema, um carro sem identificação parou ao seu lado. Agentes à paisana mandaram que entrasse. Cobriram seu rosto com capuz e o levaram de carro para um quartel – possivelmente, o Quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército, na Tijuca, onde funcionava o DOI-Codi. “Quem fazia as perguntas era um sargento enorme. Tudo era cimento: parede de cimento, piso de cimento... Durante a entrevista, foram feitas várias perguntas sobre a contratação dos soviéticos para a Coppe.”

Em 1973, o Conselho Universitário decidiu que Coimbra seria proibido de exercer postos de chefia. O fundador da Coppe deixou então a universidade e foi acolhido pelo amigo José Pelúcio Ferreira, então na direção da Finep, empresa pública financiadora de ciência e tecnologia. Lá, passou dez anos de exílio, período improdutivo que descreve como “o pior de sua vida”. A reabilitação veio em 1981, ainda durante o regime militar, quando recebeu o Prêmio Anísio Teixeira, do Ministério da Educação. “Quando viram que o Ministério da Educação, que era dirigido por um militar, ia me dar o prêmio, tiveram de revogar a proibição de ocupar cargos de chefia na UFRJ”, conta o professor. De volta à Coppe em 1983, Coimbra assumiu a coordenação do Programa de Engenharia Química, o primeiro curso da Coppe, no qual permaneceu como pesquisador até se aposentar, em 1993, já com as merecidas honrarias. “Não posso dizer que não fui reconhecido. Não houve ingratidão, não. Ao contrário”, avalia o professor.

 

Che Guevara na parede

Daí em diante, conta, foi “vida de aposentado”, passada numa casa aprazível em Teresópolis, em cuja fachada tremulava a bandeira do Botafogo. Casado há 36 anos com a baiana Marlene, há dois ele voltou para o Rio. O casal se instalou em um confortável apartamento na Barra da Tijuca – cuja piscina, aliás, foi projetada por um amigo engenheiro e professor emérito da
Coppe, Luiz Bevilacqua. Em torno dela, Coimbra gosta de receber amigos e a família – tem três filhos e três netas, a mais nova com 4 anos.

Disciplinado, exercita-se diariamente numa esteira. Gosta de assistir a jogos de futebol, ainda que não consiga acompanhar todos os lances: “As bolas antigas eram mais brancas. Com as de agora, tenho mais dificuldade.” Gosta de jazz americano (especialmente Fats Waller e Paul Robinson), Ray Charles e Frank Sinatra. Dos brasileiros, cita Maysa e Dick Farney. Mas tem uma música favorita: “Mrs. Robinson”, de Simon e Garfunkel. “É a número um para mim. A letra é de uma simplicidade... É fantástica. Ouço-a sempre que posso.”

A conversa é no escritório que mantém em casa. Nas paredes, certificados de prêmios, como o Anísio Teixeira e o Estácio de Sá, do governo do Estado do Rio de Janeiro, e antigas fotos suas jogando futebol e entre remadores. Em um canto, um retrato de Che Guevara.  “Sou admirador dele. Era um idealista”, diz Coimbra, que recentemente gostou de ver o Brasil apoiar a construção de um porto em Cuba. O professor se define como socialista: “Neste mundo de matérias-primas limitadas, se não as socializarmos, isto aqui vai durar bem menos. E a vida vai ser mais espinhosa.”

Coimbra mantém sintonia com as questões brasileiras assistindo ao Jornal Nacional e ouvindo programas de rádio. Lê os jornais e livros clássicos (Tchekhov é um favorito) com a ajuda de lupas e do iPad, que permite aumentar o tamanho das letras. Políticos que admira? Getúlio Vargas (pelo nacionalismo), Jânio Quadros, Leonel Brizola, Lula da Silva. Gosta da presidente Dilma Rousseff. “Não são perfeitos, mas é o melhor que temos”, diz, realista. Sua preocupação continua a ser a política industrial brasileira – ou antes, a falta dela. “Acabou a indústria farmacêutica nacional. Tínhamos não sei quantas fábricas de peças para a indústria do petróleo. Os estrangeiros compraram tudo”, enumera.

Entre os atrasos do Brasil, um dos que mais lamenta é que o ensino em tempo integral implantado na Coppe, que se estendeu para a graduação, não tenha chegado aos ensinos médio e fundamental. “Se pagarem bem à professorinha e colocarem o aluno na escola das 9 às 15 horas, o Brasil dá um salto”, garante. O idealismo não pede aposentadoria.

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  • Publicado em - 09/10/2015