/O que é preciso saber sobre a crise hídrica na bacia do rio Paraíba do Sul

Data: 
03/03/2015
Autor: 
Paulo Roberto F. Carneiro

Desde criança ouvimos que o Brasil é um país abundante em água, o que nos torna privilegiados entre as demais nações. Governos populistas e autoritários sempre souberam utilizar, cada um a seu modo, o poder simbólico da mensagem de país abençoado por uma natureza farta, cujo futuro dependeria apenas da adesão social aos seus projetos de Nação.

No entanto, esse mito tão propalado omitia a diversidade geográfica do país,  com exceção do semiárido, visto como um caso a parte, cujo atraso social e econômico atribuía-se à insuficiência de chuvas e aos ciclos prolongados de secas que inviabilizavam a fixação do homem no campo e impediam o desenvolvimento econômico. Pesquisadores como Caio Prado Junior e Celso Furtado puseram por terra a tese da região fadada ao subdesenvolvimento devido ao clima, evidenciando que a explicação para o atraso não estava necessariamente na semiaridez dos sertões, mas sim nas raízes improdutivas do latifúndio e sua oligarquia agrária.

O Sudeste brasileiro nunca foi objeto de preocupações sérias em relação à escassez hídrica. Os relatos de falta d’água sempre foram associados à insuficiência dos sistemas de suprimento de água frente ao crescimento e expansão das cidades, e que mereceram investimentos vultosos em sistemas de abastecimento e obras hidráulicas, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Já na imprensa, principalmente impressa, os estudos e registros históricos encontrados eram comumente relacionados às enchentes, tanto as corriqueiras como as de maiores proporções que afetavam as cidades. 

No momento, a Região Sudeste atravessa a pior crise hídrica que se tem registro. Sem desconsiderar a importância do déficit pluviométrico, abaixo da média histórica, considero oportuno que façamos uma reflexão sobre as causas primárias da baixa resiliência da bacia do rio Paraíba do Sul que potencializam as vulnerabilidades aos eventos climáticos extremos como o que vem ocorrendo. Para tanto, precisamos voltar nosso olhar para o passado da bacia para compreender as transformações ambientais provocadas pelos séculos de ocupação predatória.

A principal alteração ambiental sofrida pela bacia do rio Paraíba do Sul foi, sem dúvida, ocasionada pela devastação de quase totalidade da Floresta Atlântica que recobria suas terras para dar lugar ao plantio do café. O ciclo do café, que se estendeu entre o final do século XIX e o início do século XX, deixou para trás um dos maiores passivos ambientais que se tem registro no país. Devido às características do relevo e sem o uso de técnicas de conservação de solos já conhecidas à época, ignoradas pelas oligarquias agrárias apenas interessadas no lucro fácil proporcionado pelo braço escravo e o alto preço pago pelo café no mercado europeu, toneladas de solos foram arrastados para o fundo dos vales, restando, ao final do seu curto ciclo, solos improdutivos e erosão. A supressão da floresta úmida também alterou o comportamento climático e o regime de escoamento dos rios, percebidos hoje nos períodos secos coma insuficiência de vazões.

A visão funcionalista da natureza se tornou hegemônica no Brasil a partir da revolução de 30, período em que a sociedade brasileira passa por um intenso processo de reorientação sociopolítica e econômica.

A criação de órgãos como o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), que passou a conduzir a política de saneamento e drenagem no país, insere-se nesse contexto de “modernização do Estado”, à luz do projeto modernizador que protagonizou grandes intervenções no Estado do Rio de Janeiro. Esse órgão logrou empreender um conjunto de intervenções para o “dessecamento” dos pântanos nas planícies costeiras, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo anunciado de combate à febre amarela.

A Baixada Campista, situada na foz do rio Paraíba do Sul, denominada até o primeiro quartel do século XX como a Mesopotâmia Brasileira, pela grande quantidade de lagoas e lagunas perenes e temporárias, viu, até os anos de 1970, mais de 100 lagoas serem totalmente drenadas e aproximadamente 1.500 km de canais artificiais construídos com a finalidade de drenar a baixada dos Goytacazes. Essas obras modificaram profundamente e de forma irreversível a dinâmica hídrica dessa importante área agrícola do Estado. Hoje, a região do delta do Paraíba do Sul é a mais afetada pela atual crise hídrica. A imprensa tem noticiado todos os dias o colapso da atividade agropecuária e o crescente risco para o abastecimento público das cidades que são supridas pelo rio Paraíba do Sul.

A bacia do rio Paraíba do Sul é de grande importância econômica e social, haja vista os inúmeros decretos e portarias do Governo Federal que regulamentam o uso dos seus recursos hídricos com vários objetivos: atender às necessidades de geração de energia elétrica, o abastecimento de água das cidades ao longo do seu curso e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), o suprimento para uso industrial, a agropecuária e o controle de cheias. São múltiplos os usos da água que devem ser considerados no planejamento e operação dos aproveitamentos hidrelétricos na bacia.

A vazão que escoa pelo rio Paraíba do Sul é regularizada por quatro reservatórios utilizados, prioritariamente, para a geração de energia elétrica. O sistema de geração hidroelétrica iniciou sua operação em 1908 com a construção do reservatório de Lajes, e completou-se com a execução do plano de regularização das vazões e a construção das barragens de Santa Branca (1959), Jaguari (1972) e Paraibuna (1978), situadas no trecho paulista da bacia, e de Funil (1969) no território fluminense, para acumulação dos excedentes de água do período chuvoso.

O sistema de transposição das águas da bacia do rio Paraíba do Sul para o Guandu, construído em 1952, foi inicialmente concebido para a geração de energia elétrica. Hoje, é a principal fonte de abastecimento público da RMRJ. A bacia do rio Paraíba do Sul e seus afluentes abastecem 17,6 milhões de pessoas, sendo que desse contingente 9,4 milhões (83% da RMRJ) dependem diretamente desse rio.

Na realidade, por ser praticamente o único manancial com disponibilidade hídrica para o atendimento às demandas futuras de água, na própria bacia e para a RMRJ, esse manancial tem que ser considerado uma reserva estratégica, que não pode ser descuidada sob o risco de comprometer o futuro do Estado do Rio de Janeiro.

Estudos atuais sobre as condições na bacia do rio Guandu apontam elevado grau de comprometimento da disponibilidade hídrica para o atendimento das demandas futuras da RMRJ e alertam sobre a importância de se assegurar as atuais regras operativas dos reservatórios da bacia do rio Paraíba do Sul, indicando, principalmente, que seja alterada a atual prioridade dada à geração de energia elétrica. Portanto, devido à baixa resiliência do rio Paraíba do Sul aos eventos de seca, os reservatórios devem ser operados com o objetivo principal de garantir estoques de água para suprir o abastecimento público.

A adaptação aos efeitos das mudanças climáticas implica em estratégias de longo alcance. A recuperação ambiental da bacia do rio Paraíba exige ações coordenadas e integradas de gestão de recursos hídricos, investimentos intensivos no tratamento dos esgotos sanitários e na diminuição de perdas nas redes de distribuição de água, avanços tecnológicos no reaproveitamento e reuso da água na indústria, novas tecnologias agrícolas, entre outros.

O aumento da área florestada da bacia requer investimentos contínuos por décadas e não será suficiente apenas a recomposição de matas ciliares, sempre lembrada por especialistas. Significativas extensões de terra improdutivas e sujeitas a erosão deverão ser recuperadas com o plantio de espécies nativas de Mata Atlântica, mediante programas de incentivo fiscal e não fiscal que visem à adesão de proprietários e agricultores para a recuperação dessas terras.

Procurei demonstrar que a atual crise hídrica não decorre apenas da escassez de chuvas, embora seja um dos seus componentes. É necessário compreender que o quadro atual de vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos foi socialmente construído e estão vinculadas às escolhas técnicas e econômicas realizadas em momentos anteriores de sua história e que essas escolhas podem implicar em dificuldades a sua adaptação aos novos desafios.

Já há consenso nos meios técnicos e científicos que períodos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e que precisamos de planejamento e ações que preparem o país para essas situações. Não é admissível ouvir de autoridades públicas que precisamos rezar para que chova na cabeceira dos reservatórios e que não poderíamos prever que enfrentaríamos um período tão seco.

*Pesquisador do Laboratório de Hidrologia da COPPE/UFRJ
Biólogo, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), DSc em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (COPPE/UFRJ)

Artigo publicado na edição de Março de 2015 da Revista Faperj.
 

Data de Atualizacao: 
03/12/2015